Diretor do programa de estudos brasileiros da Universidade Harvard afirma que PSDB não sabe defender seu legado
O que falta no Brasil é um partido conservador de verdade, que defenda as privatizações, "não como o PSDB, que não defende seu legado". O PT hoje é um partido "com muito índio, mas só um cacique, porque não tem quem suceder o Lula". As opiniões são de alguém que estuda o Brasil há mais de 40 anos, o inglês radicado nos EUA Kenneth Maxwell, diretor do programa de estudos brasileiros da Universidade Harvard.
RAUL JUSTE LORESDAREPORTAGEM LOCAL
Para Kenneth Maxwell, as classes altas brasileiras ainda estão "chocadas" pela atitude das massas em reeleger Lula. A política externa brasileira é tímida, tem medo de negociar. O brasilianista diz que Lula tem nove meses de lua-de-mel no segundo mandato para usar sua popularidade e forçar mudanças. Depois, tudo ficará difícil. Leia abaixo trechos da entrevista que ele concedeu à Folha em uma rápida passagem por São Paulo, na semana passada.
FOLHA - Quais deveriam ser as prioridades do segundo mandato?
KENNETH MAXWELL - Reforma tributária, diminuir a distância entre ricos e pobres, melhorar a polícia, dar segurança às áreas das grandes cidades brasileiras dominadas pelo narcotráfico e melhorar a performance da burocracia estatal. A questão é se Lula vai usar a popularidade que provou ter na eleição para acelerar as reformas. Nada no Brasil muda rápido. A maldição do segundo mandato é forte, ele terá que correr nos primeiros seis, nove meses de lua-de-mel. Depois, já vai começar a disputa por quem será seu sucessor.
FOLHA - As coligações no Brasil dos últimos 12 anos têm partidos de todas as cores e interesses. Como liderar uma massa tão frágil?
MAXWELL - A maior força de Lula é sua evidente habilidade de se conectar com o povo, por cima das elites. Como ele pode pressionar o Congresso? O velho esquema é fazer negócios e distribuir favores, mas esse caminho já minou a reputação do governo no primeiro mandato. Se ele tem a energia e a vontade, pode ir até o quintal dos políticos recalcitrantes quando necessário. Presidentes americanos reformistas, de Ted e Franklin Roosevelt a [Ronald] Reagan, usaram sua posição como uma tribuna para pressionar os políticos. Lula teria força para fazer o mesmo. Mas ele quer?
FOLHA - Mas Lula não está mais forte agora?
MAXWELL - Ele precisa consolidar suas conquistas, aprofundar a diminuição das diferenças entre ricos e pobres, esse equilíbrio que começou a mudar e é algo muito positivo, que nunca tinha acontecido na história brasileira. Ainda é marginal, mas está na direção correta. Não só pelo Bolsa Família, mas pela estabilidade dos últimos doze anos. Sua vitória foi tão surpreendente que até agora a classe média e a classe alta estão chocadas pela atitude das massas.
FOLHA - Há especulações de que o governador eleito de São Paulo, José Serra, tem vontade de criar um partido de centro-esquerda.
MAXWELL - Há um perigo aí. Brasileiros sempre tentam dar um novo nome a algo quando não conseguem consertar o que já existe. O que o Brasil precisaria mesmo era de um partido conservador moderno, que fosse honesto ao defender o liberalismo e que assumisse suas crenças. Seria uma grande revolução. Já existe um partido de centro-esquerda, que é o PT. O que faltou na última eleição era: quem é a centro-direita? Serra tem estado sempre à esquerda de Lula, mas o PSDB tem mais alianças à direita.
FOLHA - É por isso que ninguém defendeu as privatizações?
MAXWELL - É que ainda persistem dúvidas ou uma percepção de que houve negócios obscuros durante as privatizações. Não há provas, ninguém sabe, mas muita gente acredita nisso. A ironia é que hoje a maior parte dos brasileiros têm celulares e as linhas fixas foram vendidas para espanhóis, italianos, portugueses em um momento em que a tecnologia celular estava emergindo. Os estrangeiros pagaram muito dinheiro por essas linhas. De forma objetiva, o governo ganhou. Se houvesse um sólido partido conservador, teria dito durante a campanha: "Estamos felizes pela privatização". O PSDB fugiu do problema.
FOLHA - FHC ficou só, sem que ninguém o defendesse?
MAXWELL - Seu papel continua tão engajado no debate político que ele foi tratado como um candidato. FHC não soube se reinventar como ex-presidente. Sarney ainda é poderoso no sistema político, descolado do seu governo. FHC vive relembrando seu governo e se defendendo. A saga Lula-FHC se tornou tão visceral que é necessário um psicólogo para saber quando as diferenças políticas terminam e quando começa a provocação mútua. É uma pena porque o Brasil deve muito de sua estabilidade, continuidade e espírito democrático ao que ambos significam e mantiveram como presidentes. Em seus diferentes estilos, ambos são homens admiráveis, e não somente no contexto brasileiro.
FOLHA - O PSDB perdeu o rumo?
MAXWELL - O PSDB era um partido de líderes, de caciques, sem índios. Eles têm cinco candidatos para 2010. Esse foi o problema deles durante a campanha, eles já estavam disputando 2010 em 2006. E agora o PT é um partido de índios com um só cacique. Sem Lula, não se sabe quem será o sucessor.
FOLHA - Os escândalos de corrupção não conseguiram tirar o favoritismo de Lula. O Brasil já não dá mais tanta importância ao assunto? Ou é porque "todos são iguais"?
MAXWELL - Ele perdeu o primeiro turno pelo escândalo do dossiê, além da sua negativa em debater. Os brasileiros mostraram que, sim, corrupção ainda importa. Lula foi forçado a debater, a fazer campanha no segundo turno, no que ele é muito bom. E teve que abandonar sua confortável poltrona.
FOLHA - Lula pagará um preço alto, novamente, para conseguir obter maioria e aprovar seus projetos?
MAXWELL - Acho que o governo será como qualquer outro governo brasileiro. O risco é que haja pessoas que saibam coisas e queiram usá-las. Escândalos surgem quando algo está para mudar. Tirando o último, o do dossiê, todos os outros se referiam a coisas que aconteciam há anos. Como historiador sempre me pergunto: por que esse escândalo surgiu agora, e não no mês passado ou há dois anos? Sempre há uma razão para se preocupar e saber o que está por trás de cada um.
FOLHA - Mas, com a corrupção de ambulâncias, mensalão e até presidente do Congresso que recebe propina de dono de restaurante, o senhor não acha que regredimos alguns anos nessa matéria?
MAXWELL - Não quero desculpar a corrupção, mas isso é um problema global. De como lidar com as finanças de campanhas eleitorais, que são extremamente caras, e que levam a casos de corrupção. As eleições no Brasil são muito mais caras porque o deputado tem que disputar no Estado inteiro, não só em um distrito. Na França, no Reino Unido, nos Estados Unidos há escândalos recentes por causa de doações. Agora, nos EUA, teremos múltiplas investigações porque o Congresso ficará com os democratas. Quando os republicanos eram maioria, as investigações foram engavetadas.
FOLHA - Muita gente reclamou no Brasil que, com maioria democrata no Congresso, ficará ainda mais difícil para as negociações comerciais com os EUA.
MAXWELL - Mas por que o Brasil se preocupa? Será mais difícil qualquer negociação porque Bush está enfraquecido, não só por causa dos democratas. O Brasil tem uma atitude defensiva inexplicável. Outros países são muito mais ativos. Quem impôs o Nafta [acordo de livre comércio da América do Norte] foi o México, não os EUA. Fizeram muito lobby, muita propaganda. O Chile também jogou pesado na sedução do Congresso. O Brasil nunca joga esse jogo, é tímido.
FOLHA - Qual é sua avaliação da política externa do governo Lula?
MAXWELL - O Brasil sempre aspirou a ser uma força e agora é. Isso traz problemas e você tem que enfrentá-los. A América Latina tem problemas. Chávez é um problema, Evo Morales é outro, e a Argentina provavelmente será mais um nos próximos 12 meses. Não adianta só dizer "somos grandes amigos e formamos uma só região". O mesmo em negociar com Europa e EUA, que são complicados. O Brasil nunca decidiu como negociar e o que negociar com os EUA, com Alca ou sem. Se você quer acesso ao mercado americano, que o Brasil quer e precisa, você precisa trabalhar com o sistema americano, ter negociadores duros, fazer lobby.
FOLHA - O presidente Lula comemora o fato de que ninguém mais fala da Alca.
MAXWELL - O Brasil sempre ficou com a imagem de obstrucionista, de que não quer a Alca ou nem sequer negociar. Quando, na verdade, os obstáculos estão nos EUA, nos lobbies, no Congresso, nos sócios americanos do Nafta, Canadá e México, que não querem o Brasil. Os brasileiros deveriam dizer, sim, eu quero negociar, vamos conversar. Só assim a oposição do outro lado terá que dar as caras. Você tem que jogar a bola para o campo deles. Com a União Européia, o mesmo problema. Fica parecendo que "a culpa é do Mercosul", quando eles é que são superprotecionistas.
FOLHA - Com os democratas no poder, principalmente Al Gore, o meio ambiente ganha mais espaço nos EUA. O Brasil pode sair ganhando?
MAXWELL - Quem melhor entendeu essa riqueza do Brasil no exterior foi o movimento ambientalista, com Chico Mendes como pioneiro.O Brasil pode ter propostas grandes. Normalmente, é só passivo, fica reclamando "não queremos que nos tirem a Amazônia", mas não propõe nada. Precisa ter proposta.
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