De nada disso ele se queixa – pelo contrário. O que o incomoda mesmo é um zumbido no ouvido que o acompanha desde a infância, uma dor de lado que apareceu recentemente, a violência que o impede de circular no Rio com a desenvoltura do passado e... Bem, e Lula, para variar. E Hugo Chávez com a idéia de se eternizar no cargo de presidente da Venezuela. E a esquerda brasileira que chegou ao poder sem dispor de um projeto para o país e que de uns tempos para cá resolveu pegar no pé da imprensa acusando-a de ser contra o povo. Está bom ou quer mais?
Ó paí, ó, quer dizer “olha praí”. É uma gíria baiana que virou título do longa metragem da cineasta Monique Gardenberg que estreará em março. Caetano fez a letra da música do filme - um frevo em parceria com Davi Moraes. E gravou junto com o cantor Jauperi (ouça aqui). Então com a devida licença, ó paí, ó, o que Caetano andou dizendo às vésperas do seu show desta noite no Morro da Urca destinado a celebrar o dia de São Sebastião, o padroeiro do Rio:
“A primeira vez que fui ao Rio tinha 11 anos de idade. Depois, entre os 13 e os 14 anos morei na casa de minha prima Mariinha, a quem chamava de “minha Inha”. Ela vivia em em Guadalupe. Eu tinha problemas de saúde, nenhum muito sério. A garganta estava sempre inflamada. O fato é que em toda a minha vida eu nunca me senti muito bem. Não quer dizer que não tenha sido feliz, nem que não tenha vivido prazeres intensos. Mas nunca me senti fisicamente bem.
Acabei me fixando no Rio a partir de 1975 quando já era casado com Dedé e Moreno tinha três anos de idade. Moreno e Tom nasceram na Bahia e Zeca no Rio. Estranhamente, ainda me sinto à vontade para morar no Rio apesar da violência. Mas sinto também a angústia instalada na cidade. O Rio, como diz o João Gilberto, é a cidade dos brasileiros. Tudo que acontece com o Rio afeta a totalidade do Brasil e de alguma maneira expressa o que o Brasil tem a dizer.
No momento, a impressão que o Brasil dá é de ser um país habitado por uma gente cruel, impiedosa e autoritária. O esquema de territórios incrustados num centro urbano como o Rio, disputados por chefes e milícias extra-oficiais, onde episódios de extrema brutalidade se sucedem, é justamente uma imagem oposta àquela do sonho de harmonia e de cordialidade que sempre dominou o imaginário brasileiro. Dói. Mas sou teimoso. Acho que essas impertinências hiperbólicas não deixam de ser estimulantes.
O quadro de violência decorre apenas da falência do Estado?
Tem a ver com a sociedade. A maneira como se pensa o papel do Estado e as conseqüências sociais desastrosas se devem ao modo como se pensa a economia, a cultura, o poder, tudo Há um certo desequilíbrio na forma como a sociedade encara tudo isso. As favelas de São Paulo são invisíveis e quando seus habitantes se manifestam parecem apenas zangados. As do Rio são estrelas da cidade. Por outro lado elas são muito próximas das áreas ricas, o que não acontece em São Paulo.
Uma vez encontrei uma menina da favela de Cantagalo sentada perto da Pedra do Arpoador. Ela me disse assim: “Essa pedra é minha”. O favelado pode dizer isso. Por outro lado, tenho amigas granfinas que não perdem um desfile das escolas de samba. O Rio é uma cidade assim, não é discriminatória como São Paulo. Ela é resultado de uma mistura física e de uma mistura imaginária. Poderia estar melhor. Mangabeira Unger tem razão ao dizer que o PT despreza a maioria desorganizada do povo.
Ó pai, ó. Mangabeira acabou apoiando Lula no segundo turno
Acho coerente. Eu quase votei em Lula no segundo turno justamente por causa do Mangabeira. Acabei votando no Alckmin. A aproximação de Mangabeira com Lula me deu esperanças e ainda me dá. Votei em Lula em 2002, mas sempre fui contra a reeleição. Por exemplo: não votei em Fernando Henrique Cardoso quando ele disputou o segundo mandato.
Naquela época, a imprensa foi claramente expositiva e denunciou os procedimentos poucos louváveis dele e do seu grupo para obterem a reeleição. Não é verdade que agora a imprensa foi destrutiva em relação a Lula porque ela é contra o povo. Eu tenho horror a essa conversa. Defenderei a imprensa brasileira até o fim contra tal argumento, embora tenha sérios problemas com ela. No momento, por exemplo, estou processando a VEJA e ganhei a ação na primeira instância.
Não sou muito leitor de jornais. Mas tiro conclusões rapidamente, o que pode parecer um defeito, mas é também uma marca de um determinado tipo de temperamento. Mesmo com poucos elementos minha cabeça tende a criar uma teoria. Se erro mais ou acerto mais? Não sei. Acerto muitas vezes. Mas minhas elaborações mentais a respeito das coisas são meio temerárias, reconheço - afinal eu sou artista e isso é perdoável em um artista. Sigo meus sentimentos.
Por isso queria votar em Alckmin no primeiro turno e anunciar de público, como fiz. E me preparei para votar em Lula no segundo turno. Sabia que ele ganharia. Quando votei em Lula em 2002 fiquei muito emocionado. Acho emocionante o ato de votar. Chorei dentro da cabine. Veio na minha cabeça aquele histórico de Lula e do Brasil em relação a pessoas que tiveram a mesma origem de Lula. Foi um acontecimento histórico de grande importância.
Achei que a volta do Brasil à democracia seria difícil. Porque um país que produz aquela ditadura, aceita as pressões norte-americanas, alimenta a mediocridade interna a ponto de viver aquelas coisas da maneira que viveu, não pode ficar de repente bonzinho porque a democracia foi restabelecida. A Constituição idealizada escrita por Ulysses Guimarães e um bando de malucos não nos garantiria uma vida maravilhosa. Nunca tive esperanças irrealistas. Já me bastava que pessoas com um histórico razoável chegassem ao poder.
Cara, nós tivemos Fernando Henrique como presidente e depois Lula. Infelizmente, Fernando Henrique inventou a reeleição. E agora que Hugo Chávez inventou reeleição atrás de reeleição, entende? É uma coisa horrenda. E é preciso que se diga em altos brados “Ó praí, ó...” Veja o enorme perigo que existe nisso. Suspender, como ele anunciou que fará, o funcionamento de uma empresa de comunicação, é ruim. E planejar uma permanência indefinida no poder é pior ainda. Eu tenho uma certa raiva da esquerda...
Eu disse que defenderia a imprensa brasileira até o fim porque acho que a acusação que a esquerda faz contra ela é perigosíssima. É um absurdo dizer que a imprensa tentou destruir o governo Lula de maneira golpista. Os escândalos que aconteceram, aconteceram. E eles caíram no colo da imprensa. Eu tenho certeza disso. Ser mais simpática e cuidadosa com Lula como a imprensa foi seria igual a Cuba. Seria como ter um só jornal e mesmo assim do governo.
Não pode existir só a CARTA CAPITAL que é a VEJA do Lula. Tem que ter a VEJA também. Diogo Mainard é um moderado se comparado com Paulo Francis [ex-colunista do jornal O Estado de S. Paulo].
O que pesou mais para eu não votar em Lula foi ele ter usado no segundo turno o fantasma da privatização das empresas. Achei um recurso falso demais. Eu me senti mal. É claro que a reação dos tucanos e do próprio Alckmin foi de dar dó. Parecia que a privatização era uma coisa abominável Foi a volta a um esquerdismo ingênuo, ultraprimário. Eu disse mais de uma vez que pensando o que penso e sabendo o que sei, se eu votasse em Lula estaria agindo como um imbecil. Mas respeito quem votou nele.
É indiscutível que Lula tem vocação para política, mas política no sentido de se dar bem. Ele fala que foi traído e acusa os aloprados. Mas depois aparece elogiando Zé Dirceu e Palloci. Quem foi que traiu ele? Aí o Zé Dirceu vem e diz: “Agora eu saio”. Aí Lula deixa transparecer: “Você fica aí, quieto, depois o tempo passa, a gente aí vê, afinal a esquerda está no poder e sem mim não estaria...” Isso é política. O petismo pode morrer, mas o lulismo, não. Mas o que é que Lula quer propriamente fazer? Qual é o programa dele?
Começamos com esse negócio de Fome Zero e [Henrique] Meirelles [na presidência do Banco Central]. Como se fosse o equilíbrio. Francamente... O próprio Frei Betto [ex-assessor especial de Lula] ficou meio indignado. Tem uma porção de coisas aí que não são necessariamente ruins. O Bolsa Família, por exemplo. Mas não se pode ficar no assistencialismo que desestimula a produtividade. Eu sou favorável a aumentar o salário mínimo. Mas deveria haver uma política que estimulasse a produção.
Deveria haver também uma ponte mínima de naylon, finíssima, entre o que Palocci fez junto com Meirelles e as demagogias da Cultura e do assistencialismo. O Serra tem um projeto para a economia que pensa globalmente a questão do social, do desenvolvimento e da inserção do Brasil na economia mundial. Mas eu nunca vi algo parecido com isso exposto com clareza por Dirceu, Lula ou Palocci. Não vi no primeiro governo e até agora também não. Parece que não existe.
Existe um risco muito grande na esquerda e eu sempre tive problemas com ela. Por ser assim como sou, esquerdo para a esquerda, eu vejo que ela sempre tende para um negócio arriscado. “Nós temos que estar no poder porque somos os melhores. Depois a gente vê o que faz”, ela pensa. Não projeta, não planeja suas ações. Eu vi isso com Waldyr [Pires] na Bahia. Eu fiz campanha por ele para ajudar a acabar com a hegemonia de Antonio Carlos na Bahia. Depois do governo de Waldyr, a Bahia ficou mais de ACM.
Se há um grande talento político que floresceu na Bahia foi ACM. Com alguns resultados grandiosos e perfeitamente visíveis. Agora, ele é o tipo da coisa que eu gostaria que a Bahia já tivesse se livrado há décadas. Fiquei muito contente quando [Jacques] Wagner se elegeu governador. Foi uma surpresa boa. Acho que ele é um sujeito bacana. ACM para mim é uma coisa ultrapassada. Dar ao aeroporto de Salvador o nome de Luiz Eduardo Magalhães foi uma coisa grotesca. O aeroporto deveria voltar a se chamar 2 de Julho.
Como ACM, também acho Chávez uma coisa antiga. A burka é uma coisa antiga e medieval, mas não deixa de ser uma novidade, não é? Chávez sabe jogar com elementos que entram no imaginário coletivo. Socialismo 21... Ele está dizendo tudo. É como burka. Você fala em burka e logo vem uma imagem que se tornou típica do século 21. Chavez também é assim. Isso não quer dizer que eu seja a favor da burka nem de Chávez. Ele quer ficar no poder e quer a imprensa a favor dele. Isso é coisa que a esquerda adora.
Você teme que Lula se veja diante da tentação de querer ficar mais tempo no poder?
Eu acho que sim. Lula já disse algumas vezes que na China é que é bom, que ninguém atrapalha, não tem que esperar os deputados decidirem. A admiração dele por Chávez e vice-versa é manifesta. Uma vez Lobão, roqueiro e meu amigo, criticou Alexandre Pires, cantor de pagode, por ter se emocionado ao cantar na Casa Branca. Mas naquela semana ou um pouco antes, saiu uma foto de Zé Dirceu abraçado a Fidel Castro e chorando. Eu pensei: Por que o Lobão está reclamando do Alexandre Pires?
Lobão disse que Alexandre Pires não o representava, que se envergonhava daquilo. Alexandre é um rapaz do interior de Minas, é preto, e de repente se viu no centro do poder mundial e ficou emocionado. Eu não ligaria a mínima para isso, mas eu sou um aristocrata. Agora, o Zé Dirceu era o nosso representante oficial... E chorou no ombro de um homem que é ditador há mais de 40 anos. Bush é medíocre. Foi posto lá para fazer o serviço sujo do império. Mas vai embora depois de oito anos. Fidel, não.
Você critica Lula por lhe faltar um projeto para o país. Alckmin tinha algum?
Não. Não vi. É claro que o Serra quando foi candidato em 2002 tinha projeto – mas eu votei em Lula. O momento era dele. As pessoas tinham o sonho maluco de que Lula seria a salvação. Lula pode até chamar Delfim Neto para junto dele e ninguém vai achar nada demais. Por que? Porque ele é tido como de esquerda. Como se Serra e FHC fossem de direita. Serra tinha um programa para a economia muito menos ortodoxo do que o de Lula e muito menos atrelado aos interesses americanos.
Acho que no governo Lula se avançou pouco. A economia não cresceu. Esse negócio de nacionalismo antiprivatista, isso é Geisel [Ernesto Geisel, general, presidente da República na época da ditadura militar de 64]. Às vezes ouço criticas a respeito de FHC. Como se o governo dele tivesse sido uma mera continuidade dos anteriores. Aí eu digo: Bicho, FHC lutou contra a ditadura de braços dados com Lula. Delfim Netto, não. FHC interveio mais na economia porque ele é mais de esquerda.
Minha expectativa em relação ao segundo governo Lula é matizada pelo desejo de que as coisas andem bem. O modo como a democracia foi restabelecida no Brasil superou meus melhores sonhos. Eu queria que em 1989 o Brizola ganhasse do Collor. Lula seria um desastre naquela época. Eu não gostava da idéia de eleger um governo de esquerda com aquelas fantasias. Em 2002, não. A Carta aos Brasileiros assinada por Lula mostrou que ele amadurecera. E que o PT também mudara.
Por ora é muito cedo para se pensar no pós-Lula. Ninguém sabe se ele não vai querer ficar indefinidamente no poder como Chávez quer.
Você fala sério?
Não, não acho que ele queira, mas não sei. Apesar do Brasil estar se manifestando mais por meio de seus aspectos de brutalidade, crueldade e intolerância, o país é mais sofisticado e mais complexo do que a Venezuela. A economia e a mentalidade cultural brasileira são mais complexas, mais modernas. Tal coisa não permitiria que Lula caminhasse para o modelo Chávez. Claro que há um certo otimismo nessa minha colocação. O otimismo talvez decorra do meu entusiasmo com o filme da Monique Gardenberg.
O filme “Ó pai, ó” foi inspirado por uma peça criada e encenada pelo grupo de teatro Olodum. Ganhou forma sob a direção de Márcio Meireles. Nos anos 90, vi a peça mais de 15 vezes. Sonhava em fazer dela um filme. Era só tirar a história do palco e pôr nas ruas do Pelourinho. Amei a peça e amo o filme como ficou agora. A Monique fez um filme espetacular.